quinta-feira, 13 de março de 2014

Por vir

Segundo fragmento.


Suspirou lenta e profundamente, fazendo-lhe sentir o peso da sua cabeça. Olhar franzido, a força da luz lhe indicou: fechar a cortina. A dor era daquelas que suplicava parar. “Não sei... viver pede”.
As sandálias sujas de areia eram as testemunhas da desordem do quarto. No chão, a bermuda do dia anterior. A cadeira, enquanto cabide, amparava a camisa dos cheiros, misto de perfume, maresia e cigarro. Ao canto, sobre a mesa do computador, jarra e copo denunciavam a noite.
Atravessou o cômodo rapidamente. Urgia aliviar o estado em que se encontrava.
O banho foi demorado.
A água quente sobre a cabeça atenuava os efeitos da ressaca. Com os olhos fechados, a visão era dos pensamentos, autônomos após horas de vodca, licor e cerveja, muita cerveja.
A liberdade do delírio aprisiona.
O mergulho no mar, iluminado pela grandiosidade da lua, era o início da cena infinda. O peso do corpo. A vista disforme. Vultos inidentificáveis na imensidão do oceano. Segundos de contemplação. Um breve suspiro e, sim, a leveza, ao se entregar às aguas. Prazer.
Abruptamente, repentina onda, logo após o primeiro levantar, impulsiona-lhe ao fundo. Cego pela escuridão, olhos apenas ardentes, sente tão só girar, girar, girar, a si e à terra. Quando o desespero lhe absorve,  as pálpebras se abrem. Retorna.
Sente outra vez o acalanto do chuveiro. O olhar, ainda que pesado, indica a existência. Do outro lado do embaçado box, avista a prateleira com seus livros, indecifráveis no momento. Insiste em discernir Kafka de Bukowski. Perde-se na brincadeira. A água alivia.
Não demora muito e o ciclo se reinicia, aprisionando-lhe outra vez. O mergulho no mar... Assim permanece por longos minutos, intercalando entre instantes de autonomia e prolongados encarceramentos, próprios da liberdade proporcionada pelo álcool.
Finalmente termina. Enxuga-se. A cabeça ainda dói. Olha o relógio. Rapidamente veste a primeira roupa que vê à sua frente. Sai, enfim. Esquece a dor.

domingo, 9 de março de 2014

Por vir


Primeiro fragmento

Acordou imerso na claridade do sol.
A noite foi intensa. Deitado às 4h, sentia, agora, o calor pulsar. Os sonhos ainda vivos se confundiam com a realidade do suor escorrendo no rosto. A pele em contato com o colchão irritava; fazia ressurgir a alergia.
Não suportou. Abriu os olhos subitamente. Rompendo a drástica viagem pelo Atlântico, a efêmera cegueira lhe afligiu. Bruscas mudanças tem dessas: inibem momentaneamente o olhar.
Pouco a pouco, recobrou o foco. Além da janela, a cidade mantinha seu ritmo. O vai e vem dos carros, o ciclo do semáforo, a travessia – nas pausas – das pessoas. Da sua cama, a vista é parcial. Levantou. 
Espreitando-se no parapeito, percorreu rapidamente os extremos. A árvore de lá, moradia do restante dos pássaros e dos sonhos das crianças, sofria com o tardar da chuva. A exuberante copa de antes padecia, dando evidência ao retorcido dos galhos. Cá, é a contínua cena: vermelho, verde, amarelo, vermelho... o que se vê deitado.